quinta-feira, 10 de setembro de 2015

INSCRIÇÕES I

Era impressionante o esforço que eu fazia,
Durante o banho,
Para que não saísse a marca de batom,
Cuidadosamente carimbada pelos lábios de minha mãe,
No dorso de minha mão.
Era um ritual só nosso.
Ela se aprontava para o trabalho,
E eu, ainda tão pequena,
Acompanhava todos os seus movimentos,
Com a devoção de um torcedor na arquibancada.
Quando ela estava pronta, pegava minha mão esquerda
(a do coração, dizia)
E, suavemente, ali, selava seus lábios em batom.
Chamávamos isso de
‘Beijinho pra marcar’.
Não se admitia a possibilidade
De minha mãe sair,
Pra onde quer que fosse,
Sem que deixasse registrada
A sua presença em mim,
Através das cores e perfumes
De seus mais variados batons.
Era tão lindo, cheiroso e perfeito o contorno de sua boca...
Essa cumplicidade era de tal
Relevância em minha vida,
Que eu zelava, com fervor religioso,
Para que a marca perdurasse,
Até o momento do retorno de mamãe,
Quando, orgulhosa, eu lhe mostrava
O cuidado que dispensara aos seus lábios.
Na sesta,
Eu deitava com as mãos pra cima,
Segurando o espaldar da cama,
De modo a recordar, mesmo durante o sono,
Que ali havia algo precioso
A ser preservado.
Ao me dar banho, Rutinha já sabia
Da proibição de tocar
Naquela área sagrada do meu corpo.
E creio que,
Por mais respeito aos lábios de mamãe
Do que a mim,
Ela seguia as determinações,
Com obediência canina.
Até hoje,
Quando olho minhas mãos,
Vejo a marca indelével
Da tatuagem feita pelos lábios de mamãe em minha alma.

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