Mesmo sabendo que o número de passageiros em busca de condução aumentava
generosamente em dias chuvosos como aquele, ele experimentava sempre um intenso
distanciamento da vida nesses momentos. Tudo lhe parecia estranho. Seus movimentos
e suas respostas ao mundo exterior eram acidamente autômatos. A cada braço
estendido, à beira da calçada, seu estômago revirava diante da ideia de se ver
obrigado a fazer um mínimo contato direto com o mundo vivente, ao menos para
saber o destino da viagem. Sua vontade era circular solitário, até que a chuva,
ou o seu coração, parasse - o que acontecesse primeiro. A rotina era sempre a
mesma. Respondia ao cumprimento do passageiro com um meio sorriso que se
confundia com um forte espasmo facial. Ouvia o endereço de destino, como um cão
que escuta os lamentos de seu dono, enquanto olha o trajeto das formigas no
quintal. Assim que o carro entrava em movimento, se sentia seguro, graças à
cumplicidade da paisagem que capturava o olhar do passageiro. Sua alma partia,
então, em direção a algum lugar, que ele nunca soube bem onde era, mas que,
quando voltava, trazia na boca o sabor dos séculos, e, nas costas, o peso de
todas as palavras resumidas na voz do passageiro perguntando: “Quanto é?”
Teria sido tudo exatamente assim, se, naquele dia, seus olhos não
tivessem passado rapidamente pelo retrovisor, antes que sua alma se retirasse
para a habitual viagem. Como um soco no estômago, se vira prisioneiro da
tempestade de imagens do passado que desfilavam, compondo, desde a infância, a
imagem do homem que aparecia no espelho.
Sim, era ele! Seu passageiro fora, durante muitos anos, o seu maior
amigo, com que viveu as primeiras perguntas, sofreu as primeiras respostas,
trocou abraços, socos, sonhos, segredos, namoradas, e que agora estava ali, no
banco de trás de seu táxi, olhando para a rua, com aquela expressão de
antepassado.
E se, quando o sinal fechasse, ele virasse para trás, e repetisse a
saudação que ambos costumavam usar, quando se encontravam? O amigo entenderia?
E se não lembrasse dele? E se o achasse velho e acabado e infeliz?
Decididamente, não olharia para trás, não faria a saudação, não se deixaria
descobrir pelo amigo, que agora mais parecia uma foto de jornal. Seria
suficiente olhá-lo dentro do campo de visão que o retrovisor permitia. Buscou
na memória a cena de minutos atrás, quando o amigo acenou para o táxi, em busca
de sua imagem de corpo inteiro. Mas lembrou que, naquele momento, tentava
suportar as reviravoltas de seu estômago. Nada conseguiria lembrar, pois nada
havia visto, a não ser a ameaça da presença de um passageiro no seu carro.
As cenas de sua infância e adolescência passeavam de mãos dadas, no
pequeno espaço do retrovisor, que agora já era um imenso palco, onde uma vida
de cem anos caberia.
Pelo visto, o amigo estava bem... teria casado? ... com certeza, estava
em situação melhor que a de um simples motorista de táxi.... A vontade de
abraçar o amigo tomava conta de seus braços. Talvez ele quisesse encontrar
nesse abraço, a razão pela qual suas vidas se subtraíram pela distância, no
tempo e no espaço. Ou, talvez, quisesse apenas abraçar o amigo, e dizer: “Cara!
Seria isso uma chance?”. Mas o amigo não sabia daquele motorista, com quem
compartilhara toda a cumplicidade que uma amizade suporta. Será que o amigo
ainda sentia o medo do assobio da ventania, acreditando ser chegada do ‘buraco
do mundo’, como costumava dizer a portuguesa que vendia cocadas e pipas para a
criançada?
E se, na hora de pagar a viagem, o amigo o reconhecesse? Será que iriam
pro “Bar do Bardo” tomar cerveja com limão, pra evitar a gripe, por terem pego
um temporal, na volta de algum lugar? Ou será que iria apenas cantarolar as
teimosas músicas que fizeram, durante o desejo visionário de que um dia seriam
uma dupla de sucesso?
Pelos trajes, o amigo devia estar bem de vida, e talvez não tivesse
olhar para as lembranças... “Há amizades que não precisam de convivência, nem
contato, se preservam por si só. Há outras que sucumbem, se não houver
convivência... " Qual teria sido a amizade deles? Sido? Será que não era
mais? Vasculhou a memória, tentando lembrar a última vez que pensara no amigo,
antes que ele entrasse no seu carro, há minutos atrás. Não conseguia lembrar,
parece que o amigo sempre estivera ali, exatamente como um espelho retrovisor,
que a gente nem lembra que existe, a não ser quando resolve precisar dele, e
não o encontra.
Talvez fosse, aquela, a última chance de ele reencontrar o amigo que
sempre estivera lá, e, se ele deixasse passar, nunca mais o reencontraria, e nunca
mais ele estaria lá. Então seria melhor fazer a ‘familiar saudação’ ao amigo.
Ou, melhor, ele sorriria para o amigo. Sorriria em código. O amigo, com
certeza, reconheceria, pois sempre que precisavam se comunicar em público, sem
que ninguém reparasse, usavam ‘caras e bocas’ que tinham, todas, significado
próprio.
O endereço de destino estava chegando, seu coração parecia que ia saltar
pela boca. Nesses últimos minutos, percebeu o quanto tinha envelhecido, e
também o quanto se deixou envelhecer. Naquele instante, se sentia um menino
pronto para pular o muro da escola e jogar bola, ou um rapaz ansioso por entrar
de ‘penetra’ no baile, e dançar com a mais linda garota. Um desfile, cada vez
mais rápido, de cenas da sua vida com seu amigo passageiro - passava por sua
mente. Chegou a ouvir sons, sentir cheiros, sabores e texturas. Tudo, de uma
vez só, se precipitava naquele momento. Despertou com a voz do amigo: - “É logo
ali na frente. O prédio azul”.
Ele tinha ainda a mesma voz. E, com certeza, era muito rico (a valer
pelo prédio). Talvez, não valesse a pena segurar essa chance. Talvez, não fosse
uma chance.
– “Quanto é? “.
Olhou para trás. Pegou o dinheiro. – “Pode ficar com o troco”.
Ele também estava bem marcado pelo tempo... Não era o mesmo do
retrovisor... Talvez, não fosse tão feliz assim... Talvez, não tivesse
filhos...
Despertou para o mundo do nada, com o som da porta batendo. E seguiu em
círculos, à espera do que parasse primeiro. A chuva, ou seu coração.
No quarto do zelador do grande prédio azul:
“Nossa, meu filho, que
dia de merda! Tomei um banho de chuva, tive que negociar meus vales-transporte,
pra poder pegar um táxi, e ainda peguei um motorista viado, que me olhou o
tempo todo pelo retrovisor, e quase me agarrou, na hora em que fui pagar. Deixei
o troco para ele, e me mandei.”
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